Estamos fadados a se comparar, cobrar do outro um espelho de nós, ou existe espaço pra que cada um seja aquilo que deseja, sem julgamento? Te pergunto com honestidade, porque confesso que quanto mais eu penso, menos sei, até porque, tenho minha carga de culpa nessa prática. Essa semana me bateu com força a percepção de que estamos todos sem paciência pra enxergar as pessoas da forma que são: em constante mudança e evolução, entendendo o que é delas e o que é do mundo, atentas que podem começar um movimento, mas não acabar porque encontram obstáculos no caminho. Se somos todos assim, porque é difícil enxergar o outro da mesma forma? Hoje em dia cobramos posicionamentos bem construídos, embasados e sem furos, como se as pessoas nascessem prontinhas e todo mundo tivesse ações perfeitamente alinhada com discursos coesos, mas quem vive de discurso é político. Na vida real estamos todos falhando miseravelmente pra entender como e onde melhorar, e a vida é exatamente essa jornada.
Esses dias caí na besteira de postar um vídeo simples no meu tiktok, comemorando a minha resistência aos procedimentos estéticos, visto vivemos padrões de beleza cada dia mais difundidos pela mídia. Eu não planejei, não criei roteiro, nada. Era um vídeo meu no closet, de frente pro sol, sem filtros, sem maquiagem, sem absolutamente nenhum modificador atual, só meu rosto pura e simples, com todos os seus defeitos e beleza. Quando olhei pra ele pensei que tenho vencido devagar ao desejo de sucumbir aos padrões atuais, onde muitas de nós se parecem porque o diferente não é bem vindo. Me senti feliz comigo, porque eu já quis muito fazer tatuagem na sobrancelha, quase pintei a boca uns três anos atrás, olhei dentistas pra fazer lente de contatos e desisti de todas as ideias. Em cima do vídeo escrevi a frase “indo contra uma geração inteira que ama botox, lavieen, preenchimento, tatuagem de sobrancelha, rinoplastia”. Era uma mensagem pra mim mesma, como muitos dos conteúdos que crio. O vídeo bombou e isso foi o suficiente pra me lembrar que fora da minha bolha, não há interpretação de texto e ainda, não conseguimos mesmo lidar com o paradoxo que é apenas ser humano. Se afirmar de alguma forma hoje, é ofender aquele que não se enquadra ou encaixa na mesma visão, como só pudéssemos conviver com semelhantes.
Recebi uma quantidade grande de haters, todas mulheres, me dizendo que não era problema nenhum modificar o que não gostam em si, ou que eu não deveria julgar quem não gosta do que vê no espelho. Minha primeira reação foi lógica: as pessoas não sabem mais ler, e a interpretação de texto virou terra de ninguém, como se por trás da minha própria fala eu não tivesse intenção e ela fosse modificável por cada um da forma que lhe cabe, quando todos esquecemos que a intenção de quem se pronuncia existe, mesmo que te caiba de formas diferentes. Hoje em dia, se você fala da sua experiência, está invalidando a fala alheia, um fenômeno do digital que me é intragável. Entenda, ali apenas disse que eu estava indo contra uma geração inteira modificada esteticamente. Eu não falei de você, da sua prima, da minha mãe. Falei que eu estou aqui fortemente resistindo à todos os estímulos digitais que insistem em me dizer que eu não me basto da forma que vim ao mundo, e que preciso de uma “ajudinha” da medicina moderna pra ficar “mais bonita”. Não estamos falando de propaganda pra ajudar quem perdeu um dente, tem problema nos olhos, não respira pelo desvio de septo. Estamos falando de uma quantidade massiva e diária de celebridades, influenciadoras e pessoas normais, compartilhando modificações estéticas como se fosse igual a ir pra escola: necessário pra todo mundo que quer ser alguém na vida.
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Cuidar é estar em si, enquanto tento não ouvir tanto o outro. "Tanto", porque todo barulho atravessa a gente, inevitavelmente.
Eu não julgo ninguém no meu vídeo, ali só julgava a mim mesma, mas apesar disso eu não entendo mesmo como as pessoas acreditam que o que estamos fazendo é mudar um incômodo individual. Você não acha estranho uma geração inteira de mulheres que olham pra sua boca e não gostam do que veem? Porque auto estima é algo bem particular, pra ser vendida aos montes em consultórios. Se o que acontece hoje na indústria são pessoas em busca de se sentirem bem com elas mesmas, o que aconteceu pra todo mundo achar que pra ser linda precisa de uma boca carnuda com preenchimento? Você tem todo o direito de fazer o que quiser com o seu corpo, e eu também, mas faço isso me questionando sobre o motivo. “Isso sou eu, ou é do mundo?” Algumas falaram que era fácil eu não ter me modificado ainda, porque eu era linda, mas a quantidade de mulher maravilhosa que eu vejo, transformando seus rostos pra se adaptar ao padrão atual me lembra que não basta ser bonita pra resistir, mesmo que as pessoas achem que sim. Sem contar que essa concepção de que o outro é lindo mas a gente nunca é, também é fruto de uma construção imagética da beleza ideal de hoje. Entender o que nos pertence e o que pertence ao outro não é tarefa nada fácil, nem pras bonitas (insira aqui uma tremenda dose de ironia e sarcasmo).
Tenho cílios postiços e sei que só faço isso mensalmente porque absorvi ao longo dos anos que o olhar marcado era mais bonito que o meu olhar natural, e oh, eu tô em paz em fazer um procedimento que todo mundo faz, que é resultado de uma busca pela estética aceitável hoje em dia. E o que pode ser interpretado com hipocrisia, é apenas eu escolhendo a batalha que tô afim de viver. Não milito por beleza natural, não quero que ao meu redor as mulheres assumam seus cabelos naturais ou que não façam botox. Eu mandei o contato da minha dermato pra minha amiga que decidiu que era hora do preenchimento, eu apoiei ela em toda e qualquer decisão (ela fez preenchimento e ficou uma gata sem o bigodinho chinês). A minha hora vai chegar também, porque esse tal bigode chinês é perseguição genética lá em casa. Eu posso sim usar meu cabelo natural, ter cílios de plástico, me orgulhar de não ter feito preenchimento mas esperar a hora do botox. O nome disso não é hipocrisia ou incongruência, isso é humanidade. É ser muita coisa ao mesmo tempo: ceder, limitar, ir e voltar. É mudar a todo instante, flexibilizar. Aplicar o que faz sentido pra si mesma naquele momento, consciente de que graças a deusa, posso mudar de opinião e me refazer no próximo instante. Quem é que vai atirar a primeira pedra e se declarar perfeitamente coerente na vida?
Em algum momento fui lembrada que padrões de beleza existiram por toda a história da humanidade, e que é comum que cada geração tente se desdobrar na adaptação do belo, mas ja pensou em como era feito antes e como fazemos hoje? Já pensou na magnitude do bombardeio que você recebe diariamente que a sua avó não recebia? Ela via um anúncio de revista e alguém na TV. Você acorda e dorme com isso na sua cara! A sobrancelha fina cresceu, a pele bronzeada saiu de moda e todo mundo segue com a cor da pele original, quem fez permanente nos anos 80 já está de volta ao liso, e eu mesma que alisei nos anos 2000 já tô aqui cacheada de novo, as californianas cresceram, pintamos por cima. De la pra cá vivemos altos e baixos. Nos anos 20 a moda eram mulheres sem peito ou bunda, era comum usar faixas pra diminuir o volume. O visual era andrógeno, cabelo curto, bem à la garçonne. Já nos anos 40, as divas do cinema trouxeram volume, curvas e aquela sedução que a maquiagem acentuada entregava. Batom vermelho, roupas coladas e muito femme fatale com Marilyn Monroe e Rita Hayworth como ícones da época. Quando chega os anos 90 as supermodels assumem, os corpos magérrimos, muito osso à mostra fez a moda das dietas explodir, porque até então não existia o Ozempic pra acelerar a loucura coletiva. A bulimia e anorexia ganharam mais adeptas, graças à pressão social de ser uma mulher muito magra, até que os decotes profundos, os seios fartos chegaram com tudo. Tempos áureos da revista Playboy, todo mundo foi correndo colocar silicone! A medicina já tinha avançado o suficiente pra oferecer uma solução pras despeitadas, assim como eu. E aqui cabe usar a palavra hipocrisia que tanto me foi forçada goela abaixo via comentários: depois de quatro anos amamentando igual uma vaca leiteira, eu amo ter conseguido juntar dinheiro pra preencher o mundo de pele que ficou pra trás depois que parei de dar leite. Sou fruto da mesma sociedade que você, e tenho a minha parcela de adaptação nessa corrida desmedida da beleza. Na época da minha cirurgia uma grande amiga me perguntou se eu tinha certeza, falo agora assim como respondi dez anos atrás que nunca estive tão certa disso, mesmo consciente de que fiz assim como todas que conheço: pra não carregar as marcas de anos de devoção do meu corpo à criação dos meus filhos, porque aos 27 anos eu ainda achava que o meu valor como mulher era diminuído por ter engravidado tão cedo. Enquanto as mulheres da minha idade estavam no ápice da beleza, eu estava rasgada pela metade com os seios caídos. Cedi com consciência, e ainda sou feliz com essa escolha, e que bom. Torço pra que cada mulher seja profundamente feliz com as escolhas feitas, porque dói muito perceber que você gostava mais de você antes, e que fez o que fez pra ser aceita, não pelo espelho, mas pelos homens e principalmente: pra não ser falada por tantas mulheres.
Temos sim a liberdade e o direito de alisar, colocar peito, fazer o botox aos 20, mas a gente precisa parar de cair no continho do vigário e assumir nossa responsabilidade diante das escolhas. Não existe beleza mais bonita, não adianta ser natural e infeliz, mas também não adianta fingir que a quantidade de blogueira que você consome, te mostrando procedimentos sem fim, não afeta a forma como você percebe a si mesma. Não existe feminismo quando alguma ditadura é imposta, porque a grande questão é se libertar com consciência pra fazer a escolha que a gente quiser! A gente quer sim preencher a boca e tirar um pouquinho da bochecha, mas tem que ter coragem pra saber que é uma decisão baseada em um padrão de beleza atual e não um incômodo que você carrega há anos! E tudo isso acontece porque o medo feminino de envelhecer virou uma corrida inalcançável.
Eu tô pronta pro botox, o lavieen e outros tantos. Acho bonito a gente mudar de ideia, se transformar, decidir que chegou a hora, se arrepender. A medicina e a indústria são brilhantes nos avanços que permitem que a gente se descubra de diversas formas. Envelhecer não precisa ser essa corrida maluca de parecer que não se tem a idade que tem, até porque, não depende só de estética mas muito de mente, nutrição e exercício físico. A carcaça pode ser jovem mas isso não se sustenta. A modernidade se esconde em quem questiona, reflete, faz e erra, volta por cima, se dá o direito de testar e se divertir. É se permitir estar em uma jornada de construção sem apego à razão, não se limitar ao medo do julgamento ou à pressa de se mostrar perfeito. Desejo isso. Uma vez me disseram que quando você sentir que o “chegou lá” vai estar morta, e eu sou viciada em viver, mas pra isso sei que vou me transformar a cada fase. Você se dá esse direito também?
Mas nada aqui é pra ser levado a sério né? Tudo não passa de um devaneio.
Beijos e até semana que vem!
o mais importante, como você falou, é saber separar o que é um desejo seu e o que é do mundo. nenhum problema em seguir os próprios desejos, já os do mundo…