São 7h17, meus dois cachorros em suas coleiras, meu remédio da tireoide com um copo d’água me espera no balcão. Preciso limpar um xixi que meu novo filhote adotado acabou de fazer, ele insiste em acabar com os tapetes e eu insisto em achar que ele vai achar seu caminho pra grama sozinho. Queria um café, mas acho melhor esperar mais uma hora pra minha ansiedade não atacar com tanta força, afinal é sexta e eu vou sozinha me pressionar a acabar todas as demandas atrasadas da semana. Tomo o remédio, abro o portão e saio pra levar eles pra passear. É o nosso primeiro passeio após todas as vacinas, um grande dia que eu idealizei. Coloco meus fones de ouvido, vou por a nova da Billie Eilish que me viciou, mas na hora que abro o celular recebo a notificação, mensagem enviada as 23h. Um cliente cancelando contrato, um soco no estômago, um amargor na boca. Não porque perdi um cliente, porque a vida de profissional liberal é essa montanha russa e eu domino todas as curvas a essa altura do campeonato, mas ainda odeio o processo.
De toda a jornada, posso te dizer que alguns passos não mudam:
Negação: aqui eu achava que ele ia se arrepender, porque em breve ele ia ver o mundo la fora dos prestadores de serviço meia boca e voltaria. Depois percebi que ele não volta, porque ele queria pagar metade do que eu cobro e ele sabe que vai receber metade da qualidade mas ele tá em paz, e eu deveria ficar também.
Raiva: me subia uma onda desregrada de raiva pelo corpo. Como ele pode fazer isso depois que me doei tanto? Só que aprendi que eu me doou porque amo, não porque vou ganhar algum tipo de recompensa, e essa lição me libertou de querer receber tapinha nas costas.
Barganha: eu passava um bom tempo querendo achar um meio do caminho entre o que o cliente queria, o que eu achava justo e o que faria todos felizes pra que o indício do fim fosse apenas uma tentativa de renegociação. Depois entendi que os acordos precisam ser honrados, que quando a gente tenta compensar os erros do processo, independente de quem são, a relação pesa pra um só lado.
Depressão: deitada na cama sim, choro pesado, perguntas inflamadas do tipo “porque isso aconteceu?”, “o que eu fiz de errado?”, “eu não quero mais fazer isso com a minha vida”. Me abalava profundamente, porque eu levava pro lado pessoal, como se apenas a minha pessoa fosse a responsável por tudo: erros, desacordos, injustiças, pouca entrega, expectativas altas. Como o tempo é bom, porque eu entendi que a gente erra sim, mas em qualquer relação tudo depende das mãos bem dadas pra prosperar.
Aceitação: recebo, entendo, me reuno com o meu time, pesamos nossos erros, refazemos alguns processos pra melhorar, deixamos claro como precisa ser na próxima, nos abraçamos e seguimos mais firmes. Lembro que a impermanência também é um fator presente na vida profissional, a constante é a nossa postura diante do que ocorre. Antigamente eu ruminava isso por meses e até atrelava pensamentos ruins pras pessoas, sendo que todos nós, eu inclusa, somos luz e sombra. De nada ajuda se a nossa mente vira um lugar tóxico!
Acontece que esse devaneio ta preso na minha alma tem muitos meses. Já cuspi ele aqui e ali em outros momentos mas eu não supero! Eu nunca vou superar o fato de que o exigido de qualquer trabalhador é a sua mais pura prioridade e atenção por horas a fio do seu dia, e se você quiser ser bem sucedido você precisa se doar mais que os outros, precisa ser um obcecado, bater dez, doze horas de trabalho. Precisa atender ligações e áudios no meio de tarefas importantes, precisa se posicionar como o mais disponível da cadeia, e ai sim você abraçou a camiseta do time, você é digno de atenção, remuneração, posição e cargos altos. Se você não pensou nisso ainda eu preciso te abrir os olhos: você só existe pra ser produtivo no mundo! Você só tem serventia com o seu trabalho, você é o que você faz. O mundo ta te impondo todos os dias a máxima da produção desenfreada, pra que você coloque cada dia mais dinheiro na mão de quem já tem! Te lembrei aqui como a verdadeira moeda do século XXI é o tempo, e como tem sido difícil riscar o limite pra se manter mentalmente saudável.



Trabalhar com alma, mas não deixar que te massacrem ela no processo.
O que me mantem com raiva do mundo é olhar pras pessoas e perceber que elas querem sim que eu lute pelos sonhos dela, sem ao menos conhecer os meus. Os últimos meses eu não consegui pausar pra escrever nenhum devaneio, apesar de manter uma lista de coisas que tem me feito refletir no meu bloco de notas, porque não tem me sobrado energia pra sentar e conseguir racionalizar tanto incômodo. O trabalho, que eu amo, tem exigido uma quantidade grande de horas e de energia que acaba me afastando do equilíbrio que eu busco e amo. Não existe no desenho do nosso dia um encaixe de tempo pra coisas importantes pra vida cotidiana e quanto mais eu penso sobre isso, mais percebo que a ignorância é uma benção. Trabalhamos no mínimo oito horas por dia, de acordo com pesquisas gastamos pelo menos duas horas no trânsito, já são dez totais. Se você é CLT, precisa tirar duas horas de almoço, ou no mínimo uma em alguns regimes. Já são onze horas do seu dia. A gente precisa: fazer cocô, tomar banho, lavar o cabelo, fazer a maquiagem, tomar remédio, fazer o próprio café da manhã, arrumar a cama, cuidar dos bichinhos. De acordo com estudos de 2019, mulheres gastam apenas com a casa, 2h30 por dia! Com afazeres domésticos! Ou seja, se você é mulher, você ja gastou treze horas e meia no seu dia, sem fazer absolutamente NADA pra si! Sem ir na manicure, levar a roupa na costureira, hidratar o cabelo, ler um livro, estudar pra melhorar seu emprego.
Já parou pra pensar que nem tempo pra transar a gente tem? Tanto se fala sobre o casamento no século XXI estar fadado ao fracasso, que as pessoas não sabem mais estar juntas, que somos a geração com menor possibilidade de se casar porque existe um afastamento dessa realidade. Adivinha o motivo mais dado pela pesquisa? Estabilidade financeira! Imagina, quem tem isso hoje em dia? Na minha idade a minha mãe já tinha casa própria, e apesar de pagar uma parcela de financiamento, ela não pagava aluguel que era mais alto na época. Na geração dos milennials, apenas 16% tem poder de compra pra adquirir um imóvel, e a explicação é o alto custo de vida. Ou seja, além de estarmos exaustos, temos medo de construir qualquer coisa a longo prazo, casamento e imóveis por exemplo, porque apesar da dedicação cega, da quantidade absurda de trabalho, a conta não fecha. E ai as 22h57 eu recebo uma mensagem de cancelamento de contrato, com o motivo principal sendo a minha indisponibilidade de atender fora do horário comercial, que pra mim é um fator inegociável. Eu me recuso a ceder do tempo da minha vida pra construir algo pra outra pessoa que simplesmente não deseja que eu construa a minha. Que negocia uma baixa remuneração, que exige uma quantidade de horas desumanas, que não olha nos olhos e se lembra que tem uma pessoa do lado de cá. Que insiste em achar que estamos à serviço do outro vinte e quatro horas por dia. Sou feroz demais, capaz de trabalhar dezesseis horas no dia com sorriso no rosto, mas me quebro em segundos quando percebo que você vive pro seu próprio umbigo e a minha saúde e sonhos não valem nem um centavo do seu respeito, dinheiro ou preocupação.
“O indivíduo deixa de ser um sujeito de direitos, transmuda-se em capital humano, pela servidão voluntária, e deverá moldar-se às premissas do empreendedorismo e aos discursos de meritocracia.” Rubens Casara em Contra a miséria Neoliberal
Me recuso a incentivar a concorrência desleal, aquela que se baseia na premissa de que somos todos descartáveis e ao mesmo tempo concorrentes. A naturalização dos absurdos, pra que seja comum eu atravessar os limites do razoável onde me coloco em um lugar de falsa superioridade. Eu tenho tentado com todas as forças, quebrar esse ciclo na minha própria mente. Uma pessoa humana que valoriza quem as pessoas são, os sonhos dela, a vivência que atravessam. Que deseja muito crescer mas de mãos dadas, porque lá no topo deve ser bem solitário sem ter com quem brincar, porque não vamos todos? É óbvio que ninguém tá vivendo no comunismo, os boletos estão ai, a vida segue girando, somos pagos pelo que trabalhamos e o mercado tem suas regras e máximas, mas onde foi que confundimos dinheiro com poder a ponto de achar que detemos do tempo e desejo dos outros sem mais? Não somos donos de ninguém, tampouco podemos esquecer do razoável como justificativa pra nossa vida descompensada, quase como se você quisesse espalhar essa doença que é não ter limites pra viver uma vida saudável. Somos todos sujeitos a erros, mas repetir os mesmos padrões tóxicos é intencional quando você não se atenta e muda. Mudar é uma ferramenta de libertação, pra si e pra quem te rodeia. Sucesso também existe ao lado de respeito e generosidade.
Mas nada aqui é pra ser levado a sério né? Tudo não passa de um devaneio.
p.s.: Esse devaneio foi escrito em novembro, mas tem coisa que leva tempo pra digerir.