Essa semana durante o almoço tive uma conversa séria com os meninos. Era segunda-feira, o final de semana havia acabado e eu estava exausta. Na semana anterior eu havia gravado algumas receitas pro meu Instagram em parceria com uma marca, a geladeira lotada, mil idas ao mercado, tupperware pra todo lado. Sem contar os dias de sessão de fotografia de comida e o trabalho de marketing pra restaurantes que drenaram também. Tô te contando isso pra te dizer que eu estou rodeada de comida, todos os dias, o tempo todo. Eu construí uma carreira com a comida e em dez anos eu sigo num fluxo de montanha russa que mistura dois polos opostos: amo profundamente cozinhar e servir pra família e amigos e do outro lado eu odeio pensar no que comer. Tem horas que eu corro pra cozinha, e outras onde é um martírio profundo pensar no que fazer. Passei o dia absorta no universo da gastronomia e não quero decidir o que a minha pequena família de quatro pessoas vai comer no jantar, entende? Estou exausta mentalmente e quero que outra pessoa tome essa decisão no meu lugar, as vezes quero que ela decida e cozinhe e também tem os dias que desejo um delivery porque fui bombardeada de comida gourmet e meu cérebro quer rejeitar o arroz com feijão, que é a comida de todo dia aqui em casa. Faço dieta, não restritiva e nem com o objetivo de emagrecer horrores, mas tenho feito uma reeducação alimentar depois de atravessar a anemia e o hipotiroidismo, porque meu objetivo é longevidade e pra isso preciso de músculos, que precisam de proteína e como vegetariana, sou inimiga da dita cuja. Isso significa que minhas limitações tornam a dinâmica da casa ainda mais complexa, porque tem a comida deles, que leva ovos, leite e carne, e tem a minha, que não entra nenhum desses. A minha todo mundo pode comer, a deles eu passo, obrigada. Os dias que eu mais vacilo com a minha dieta, são os de exaustão mental. Em um dia normal, posso observar você comer um cookie de chocolate quentinho e não me abalar, mas cansada eu quero tudo que não me der trabalho. O cansaço é sim o grande inimigo do comer saudável!
Depois dessa semana de caos e geladeira abastecida, você assume que passei o final de semana hibernando com a minha comida deliciosa, mas não. Como uma boa mãe que aprecia cuspir na própria testa, meus filhos também são apaixonados por cozinha e se deliciam com a possibilidade de que a mãe deles é capaz de fazer toda e qualquer receita que eles sintam vontade. A culpa? É óbvia que é apenas minha, que fiz o pão do zero, o bolo em quinze minutos, o enroladinho de queijo caseiro das lancheiras, a tradição de natal que começa a ser preparada às três da madrugada. Eu pintei esse quadro e agora vivo nele. Eles comeram o que tinha nas marmitas e pediram mais coisas, pois tenho três homens em casa e um quilo de arroz aqui dura três dias no máximo. Moral da história: fiz costelinha suína, bolo de banana com chocolate, foccacia fresca e o escambau. Tinha uma receita ou outra pra mim mesma ainda nas marmitas, mas não pra família toda. Isso significa que cozinhei, de novo e mais uma vez, em parte pelo prazer de servir, de partilhar daquele sorriso de olhos fechados quando eles colocam a primeira garfada na boca, em outra porque evito ao máximo pedir comida. (Você já alimentou três machos famintos pelo iFood? Sai caro demais essa brincadeira.) Bom, contexto dado, vamos voltar pro papo de segunda.
Eu, com a minha carteirinha de feminista, me preocupo ativamente em criar dois meninos que entendam que as mulheres não tem nenhuma obrigação em servir aos homens. Acho que esse conceito arcaico e me dou o direito de servir naquilo que tenho prazer, da mesma forma como os homens fazem comigo. Gosto de cozinhar? O banquete será servido, não porque “eu tenho que”, mas porque eu gostaria de. A ironia é que aqui não consigo inserir nenhum exemplo masculino, porque eles não possuem nenhuma “obrigação” reconhecida pela sociedade. Não lavam, passam ou cozinham. O que seria o equivalente a expectativa de ser servido por uma mulher? Que ele encha meu tanque de gasolina porque eu odeio ir ao posto? Não. Ah, já sei! Que ele conserte tudo que estragar na casa. (Precisei de mais de dez minutos pra achar esse paralelo, impressionante). Só que essas visões de obrigação além de ultrapassadas, são irreais, e nos proporcionam uma limitação profunda de papéis e independência diante do que seria uma adultice funcional. Se uma mulher durante toda a minha vida cuidar da minha alimentação, começando da lista e compras, como eu serei um homem que faz alguma coisa pra me nutrir sozinho? Eu convivo com homens adultos que não sabem fazer um arroz, e tenho certeza que você também. Como você vai ser um adulto auto suficiente sem se alimentar de forma independente? Porque se come bem com uma mulher em casa mas sem ela você vive de delivery? Você se isenta da responsabilidade de nutrir seu corpo e só é capaz de fazer isso terceirizando pra outra pessoa: mãe, esposa ou restaurante? E aqui vou tentar sem minimamente equilibrada: sou uma mulher que troca a fiação dos interruptores sozinha, penduro quadros e monto móveis. Meu noivo faz tudo isso por nós? Sim, mas poderia ser eu. Ninguém pode estar amarrado à outra pessoa pra sobreviver. Você cria um espaço de sobrecarga absurda, e nesse caso da alimentação, limpeza da casa e até mesmo criação dos filhos, qual dos dois “papéis” impacta mais na rotina: organizar a alimentação diária com mínimo de três refeições ou trocar o fusível do chuveiro todo inverno? Organizar as lições de casa, trabalhos, revisões pra prova ou colocar um pé novo no sofá uma vez a cada quatro anos?
Existem diversas formas de contribuir pro cenário do cuidado de uma casa e de si mesmo, mesmo que você não seja quem desempenha o papel principal. Não cozinhou? Lave a louça, coloque a mesa, faça o suco, recarregue a bandeja de gelo, faça a lista de compras, vá ao mercado, sugira as refeições. Que tal fazer companhia? Colocar uma música deliciosa? Transformar essa função eterna em prazer. É o que tentamos fazer aqui em casa, reunir todo mundo nesse momento, não apenas pelo grande bônus que é o convívio familiar, mas porque um só não pode carregar o restante nas costas. Conversar sobre divisão de tarefas é conversar sobre carga mental, auto suficiência, gentileza e empatia. É trazer ferramentas pra se construir uma mente que planeja e executa, ao invés de uma que arruma desculpas e procrastina. Se sentir capaz é fundamental pra nossa auto estima, não só a sua beleza no espelho. A gente se sente mais forte quando se supera do que quando malha na academia. Dizem que depois de uma certa idade o ser humano não faz novas conexões entre os neurônios, pois pasme, os estudos recentes afirmam que uma das possibilidades pra novas conexões neurais é através da execução de tarefas que não queremos tanto fazer. Arrumar a cama, escrever aquele trabalho chato, ir malhar sem muita vontade. (Fica o disclaimer: não estamos falando de fazer coisas que você não gosta ou se forçar a situações ruins ou de perigo, ok?) Imagina que incrível: quando você faz algo que não estava muito afim de fazer, seu corpo e mente entendem que você é mais forte e capaz do que imagina, e eles respondem à isso. Com que idade aprendemos de fato que não dá pra fazer só o que a gente gosta ou quer? E com que idade entendemos que a gentileza e o cuidado das nossas ações também são aquilo que movem as relações?
Ironicamente, depois desse papo honesto no almoço onde expus que me senti sozinha na obrigação da comida no último domingo e todo mundo deu seu ponto de vista e se desculpou, li um thread (o twitter do instagram) de um cara perguntando qual era o nome do homem que abria a porta do carro e pagava a conta. Adivinha? Um chuva de respostas do tipo “corno” ou “otário”. É muito fora de moda o cultivo de pequenezas nas relações, porque criamos um jogo de poder inútil nos relacionamentos. E também porque venderam algumas inverdades aos montes, como a preferência da mulher cis por caras que não são “bonzinhos”. O mito de que “mulher de verdade” gosta de ser mal tratada, um clássico machista que gosta de plantar que a virilidade está atrelada a grosseria e arrogância, e muitas vezes violência. O homem que cozinha é menos macho, que faz skincare e se veste bem então? Esse ai é “suspeito” como hétero. O cara que abre a porta pra mulher é um bocó. Pagar a conta a gente deixa pra lá, porque essa discussão é profunda e eu gostaria mesmo de focar nos atos de afeto que nossa vida transborda, dos quais ao invés de cultivar, a gente tem tentado transformar em guerra e moeda de barganha. No final, homens deixam de fazer gentilezas pra não serem vistos como “otários” e mulheres deixam de fazer as suas porque não aceitam a obrigação que nos empurram. Pra onde isso leva a gente? Você se relaciona com as pessoas contando quantas pequenas gentilezas elas lhe ofereceram? Será mesmo que o amor é uma longa conta de matemática, ou será que criamos um jogo de poder porque temos dificuldade de falar sobre machismo e feminismo na minúcia da rotina?
Se a gente oferece aos outros pela vontade de ser agraciado de volta, será mesmo que estamos trocando cuidados ou apenas contabilizando o amor como moeda de migalhas? Tem quatro anos que o Danilo abre a porta pra mim, todos os dias. Óbvio que não em todas as situações, mas sempre que existe espaço. Assim como carrega meu equipamento até o carro depois de um longo dia, massageia meus pés e deixa bilhetes pela casa. As pessoas antigas chamariam de cavalheirismo e falariam que saiu de moda, virou démodé, breguíssimo e inimigo do feminismo. É meio óbvio que eu sei abrir a porta do carro, mas aceito de bom grado esse cuidado. Assim como sempre que posso, faço o café preto cedinho e levo até o nosso quarto enquanto ele se arruma, compro sobremesa quando saio de casa porque ele ama ou passo meses atrás da mesma camiseta em sete lojas até achar a mesma que ele tem e ama usar. Nenhum de nós conta pontos! Em fases, um tem mais energia que o outro pra depositar nessa troca, e em seguida essa balança troca de lado. Ele seria um cavalheiro? Pra quem é “dos tempos de antigamente” sim, mas e eu? Não tem palavra no feminino que traduza o cavalheirismo, os homens chamam de obrigação. E quando alguém te diz que você precisa fazer alguma coisa, você repudia com todas as suas forças, porque quem dita o que você deve ou não fazer, deveria ser você mesmo. Desse jeito percebo como estamos nos afastando e contando pontos. Pois bem, e se a gente deletar as convenções dentro dos relacionamentos e aprender a cultivar aquilo que somos de melhor pro outro? Deixamos os nossos papéis independentes do estereótipo e da expectativa, damos espaço ao protagonismo do amor na sua melhor forma, largamos a barganha e as moedas que só aparecem na guerra, a matemática que contabiliza tudo pra jogar na cara é zerada. E se você decidir com o seu parceiro ou parceira, seus filhos e filhas, que a partir de agora faremos todos, o cuidado que nos cabe, com carinho, inclusive aqueles que infelizmente as vezes não são a nossa escolha número um? Sem os papéis de gênero enraizados na nossa cabeça. Se ele cozinha bem, lave a louça você. Se os dois cozinham bem, vamos revezar. Se o quadro está precisando de martelo e prego, ele anda corrido, pendure você mesma. Adultos funcionais desenrolam tarefas sem pensar a quem elas pertencem, porque dentro de um lar, elas pertencem a todo mundo! Vou cozinhar todas as refeições com amor, mesmo em dias que eu não me sentir tão motivada, e você vai escolher a sua forma de estar comigo nisso, que seja do seu instinto e vontade de contribuir, mesmo nos seus dias de saco cheio. Meu filho mais velho gosta de colocar a mão na massa, eu chamo ele de meu sous chef. Meu caçula coloca a mesa toda as vezes e eu acho demais. Meu gatão liga a música, cuida das bebidas e lava a louça. Nos dias de hambúrguer eu fico com a música e a louça, ele vai pra chapa. Ninguém se sobrecarrega, todos tem seu papel, a vida acontece no detalhe e cada um pega o prato do outro que tá pra cair!
Esse final de semana foi atípico. Todo mundo meio cansado, reta final de ano, provas e trabalhos no mundo infantil, milhares de demandas no nosso. Só que errar e alinhar junto é um bom caminho, se não, o único caminho. Nessa conversa lembrei de sinalizar “ei galera, eu tava cansada também mas o show tem que continuar”, falamos das gentilezas que a rotina pede pra ser leve, da atenção pra cuidar do outro que também cuida da gente. Fazemos de cada refeição um espaço que me lembra que é possível que a divisão de tarefas seja algo real e que ninguém conte pontos ou sinta que fez mais pelo outro. O espaço pra que essas conversas existam, pra que o alinhamento aconteça, pra que você sinalize o seu cansaço ou expectativa, pra que você erre, existe? A gente precisa de um lugar seguro pra errar, pra crescer, pra recomeçar. Sem briga, sem ponto, com carinho. Pra que não exista batalha, o chão precisa ser neutro, não dá pra fingir que somos um personagem, disfarçar o que sentimos, ou esconder as expectativas. Toda relação carrega uma projeção de cada lado, mas se você entende que pro sucesso dela o outro precisa estar ciente disso, o diálogo acontece. Ele é suave, leve e fácil? Não. Eu mesma precisei de pelo menos cinco anos pra aprender a falar o que sinto e o que espero. Agradeço por ter, finalmente, alguém que me ensina a importância disso, que tem a paciência pra criar um espaço seguro onde eu me debato pra usar as palavras ao invés de contar com a bola de cristal alheia. O que parece simples pra uns, pode ser um abismo silencioso pra outros. Se você percebe que alguém tem mais dificuldade, a importância de não criar uma guerra de gentilezas se faz ainda mais necessária. Não conte os pontos, se permita errar e permita que errem com você, sem que isso seja definitivo. Aprender a zerar o placar e começar de novo amanhã é uma sabedoria. O amor merece uma segunda chance sim, porque pra ele crescer você precisa permitir que errem.
Mas nada aqui é pra ser levado a sério né? Tudo não passa de um devaneio e você vive a vida da melhor forma que lhe couber.
Beijos e até depois!