Chegou ao final. Depois de vinte e um dias de muito comprometimento, a jornada criativa que conduzi em grupo acabou ontem a noite. É gostoso fechar um ciclo, especialmente esses que te convidam a revirar um pouco o interior. Todo dia uma atividade era proposta, entre colagens, desenhos e escrita, a verdade é que a experiência provoca a gente a abrir muitas caixas internas, e quem se comprometeu com o processo lidou com o próprio espelho, e pra isso é preciso muita coragem. Em um dos dias, propus uma atividade que parece boba, mas que em mim teve um efeito dominó: lidar com as adultices. Adultice é o nome que dei pras sagas da vida adulta que envolvem burocracias insuportáveis e outras nem tanto, como marcar médicos, ir ao Detran, resolver questões de bancos e por ai vai. Nada disso tem manual, apesar de eu desesperadamente pedir por um, pra quem quer que seja. O que é que tem na vida adulta que o mundo fica tão complexo? Ninguém te ensina que ao comprar um carro usado na concessionária é preciso checar o estepe e o macaco no porta-malas, porque parece óbvio que tais itens jamais deixariam de vir, mesmo que eu não saiba exatamente onde o macaco mora. Mas nessa história verídica, a ousadia da loja foi maior que a obviedade da minha inocência. Também não te ensinam a alugar um apartamento pela primeira vez: quem é que tem dois fiadores de confiança? E que ideia estapafúrdia é essa que você precisa fazer a própria vistoria se quiser não ser cobrado por coisas que sempre estiveram lá? E você já tentou resolver algo em repartição pública? Me sinto a própria barata tonta porque cada um me diz uma coisa. Custa alguém escrever um livro chamado “Como ser um adulto funcional sem passar raiva?”
Voltando pra jornada, eu propus que cada um fizesse a sua lista de adultices que tem evitado enfrentar nos últimos meses. Cada uma dessas coisas da nossa lista, é uma aba mental aberta, que trava o nosso progresso, que muitas vezes tira o sono e que seria mais simples resolver se tivéssemos lidado com ela na hora certa. Ir fechando as abas é se permitir desligar da preocupação e se conectar com o presente, porque o “e se” some da nossa cabeça: “e se eu for parada sem carteira?”, “e se a máquina quebrar esperando manutenção?”, “e se a fulana não estiver lá pra abrir porque perdi a chave?”. Acontece que eu devo ser uma sadomasoquista, porque propus um desafio que eu sei que ia me tomar tempo e energia, porque existe um motivo pelo qual a gente procrastina esse tipo de coisa, a adultice foi forjada no inferno pra desafiar o humano a se tornar um adulto resiliente e maduro, e eu não ando querendo ser nada disso, mas não sou hipócrita e fui cumprir com a atividade que eu mesma propus.
Nas últimas duas semanas eu estive no Detran quatro vezes. Como não consegui, por causa de terceiros, resolver a perda total do meu carro no ano passado, agora com tudo pronto preciso do DUT mas só pagando o IPVA de 2024 sendo que não existe mais carro pra pagar, e eu preciso achar quem no Detran vai me ajudar nisso. Consegui? Não. Quatro visitas em unidades diferentes e nada, e ainda bem que não sou rica ou pagaria só pra me livrar da dor de cabeça, jamais vou julgar no futuro quem paga pra se livrar mesmo que essa ideia seja absurda e conivente com o caos. Também estive no cartório três vezes pra me divorciar, veja bem, três vezes porque eles não podem imprimir um papel da impressora e você precisa ir em algum lugar imprimir pra voltar la e entregar. Percebe? Com a impressora te encarando com cara de sacana. Fiz contratos, paguei impostos, levei roupas e sapatos pra arrumar, e sobretudo, tive conversas dificílimas com quem era preciso. Porque tá aí outra coisa que a gente adora evitar: construir limites. Nos deixamos ser massacrados no dia a dia pela insegurança de riscar linhas nítidas no chão, pra que ninguém atravesse, e quando atravessam ainda queremos dar um feedback gentil que gera pouco impacto e quando vemos, estamos ali no ciclo eterno de se ferir. Moral da história: fiquei um pilha de nervos. Senti na pele uma raiva que nunca tinha me habitado antes. Vislumbrei que poderia ser presa se seguisse assim, porque eu sou uma pessoa que desenrola e faz acontecer, e me deparar com a impossibilidade de acabar com alguma tarefa porque a pessoa não pode usar a impressora da mesa dela pra isso acaba com a minha essência e me tira do prumo, pra colocar em termos educados. Eu sou uma pessoa resolvedora de problema, faz parte da minha identidade e genética, e tudo isso foi um massacre.
Parada no banco das repartições públicas, com fone no ouvido e o caça palavras na mão, me obrigando a lidar com as minhas próprias emoções, me perguntando de onde nascia aquela raiva ensandecida. eu entendi: eu estava com muita raiva de mim mesma. Um pouco de raiva do mundo que gira rápido demais? Sim. Com ódio das burocracias brasileiras que não fazem sentido? Com certeza. Só que a verdadeira raiva era de mim mesma, porque eu me deixei chegar em alguns pontos desnecessários, porque quando você procrastina, quando você não encara de frente as responsabilidades da vida adulta, elas voltam maiores e mais cabeludas, e você não tem ninguém pra culpar além de si! Eu fiz a minha primeira restauração de um dente no dentista na semana passada, no dia que o plano dentário estava de mudança e eu nem sabia. A parte do plano, graças a deusa me isento, mas ganhei a minha primeira cárie profunda porque não lidei com o meu bruxismo, quebrei um dente e ela se instalou lá pra morar comigo na tremedeira. Ou seja, eu já ia lidar com um problema mas ganhei outro. Porque? Porque a gente acredita com todo o coração que o que os olhos não veem, o coração não sente, mas a verdade é que o que agora está fora do seu campo de visão está se multiplicando e você vai sentir dobrado
Enfim, tenho feito as pazes comigo mesma e me prometi ser mais efetiva nas minhas resoluções. Chega de varrer pra debaixo do tapete, chega de listas de adultices que nunca cumpro, não quero mais ignorar pequenas grandes tarefas dolorosas. Fazer adultices vai virar meu sobrenome de mulher funcional e eu vou acolher o mundo da forma como ele é: complicado e imperfeito. Diante do incontrolável vou aprender a cultivar a única coisa que pode me ajudar a atravessar por isso, que é a minha capacidade de sentir. Eu sou apenas responsável por como eu processo todas as coisas lindas e dolorosas que acontecem, dentro de mim. Aqui do lado de fora o controle é uma ilusão e dançar conforme a dança é melhor que limpar o salão no final. Dançarei com a minha loucura e com a minha incapacidade de entender os processos burocráticos brasileiros que não têm manual. Vou inclusive construir um manual de navegação interno, onde eu vou ler como lidar com a raiva, a culpa e o perdão. Nesse pequeno livro vou separar um capítulo pra auto-crítica e auto-responsabilidade, e sem dúvida uma introdução baseada no fodacy, porque a vida não pode ser levada tão a sério e talvez seja por isso que procrastino adultices, quero viver só coisas leves e deliciosas, mas apenas as crianças têm esse privilégio! Se eu fosse capacitada para aconselhar qualquer pessoa eu diria isso:
Lide com tudo que é sombra e se permita mais tempo de luz! Adiar é ilusão. Esse tal de “o que é pra ser seu vai te encontrar” também funciona pra problema. Eles não somem, então vamos tirar da frente que a felicidade pede passagem!
Mas nada aqui é pra ser levado a sério né? Tudo não passa de um devaneio.
Beijos, até segunda que vem!
Adultices…chatas demais
Excelente texto pra variar 🫀