As vezes no silencio da noite eu desejo ser Nara Smith e preciso te contar porquê. Se você não sabe quem é, te conto agora: uma mãe de família, modelo, mórmon, que está grávida do seu marido modelo, vive em uma casa de revista e produz vídeos do seu dia a dia que parecem simplesmente a perfeição. Esse é o resumo do que sinto quando olho o conteúdo primoroso e lapidado que ela apresenta em seu perfil no Tiktok. Todos os dias você encontra uma nova receita feita absolutamente do zero, desde um queijo quente do qual ela fez o pão, o queijo e a manteiga, até pratos complexos com toque asiáticos. Dois filhos com menos de quatro anos e grávida! Desfilando roupas lindas e um skincare de milhões. Se eu não fosse um ser humano racional, me deixaria influenciar pelo fato de que essa parece ser a vida real dela, sem recortes, mas vamos ser brutalmente honestos: nenhuma vida é como a online, pra nenhum de nós. Só que isso foi esquecido pela crítica. Nas últimas semanas, Nara gravou vídeos e entrevistas pra se defender dos ataques, o que é surreal, não porque ela tem quatro milhões de seguidores que adoram o que ela publica, mas porque que mesmo mãe de dois e grávida, ela ainda acha que precisa se justificar pro mundo, com tanta comida e tanta louça pra lavar. E justificar trazendo os aspectos negativos da própria vida pra humanizar o fato que todo mundo já sabe: ninguém só vive calmaria.
Acontece que nas redes sociais uma crescente fervorosa acontece silenciosamente: as tradwives. Se você também precisou de um google, seja bem vinda ao clube! As tradwives são as mulheres que optaram por se dedicarem às atividades domésticas e à família exclusivamente, ou seja, elas abdicaram da carreira profissional. E até ai tudo bem porque não vou entrar nesse mérito, até porque, só você mulher, com vida dupla sabe o trabalho que dá essa peleja de fazer uma carreira e cuidar da casa e da família, ao mesmo tempo. Dez dias atrás enquanto todo mundo parabenizava as mulheres “pelo seu dia”, eu revirava tanto os meus olhos que achei que eles iam descolar do meu rosto. Não tem nada mais hipócrita e nojento pra mim do que receber parabéns de homens que seguem pregando que as mulheres deveriam ganhar menos, que elas dirigem mal, que deveriam estar em casa, ou aqueles que passam os nudes no grupo de amigos, não tiram a mesa na casa da mãe, não pagam a pensão mas postam no instagram como são super pais, reclamam de fome mas não sabem ferver a água do café. Não dá mesmo pra ser um feliz dia pras mulheres, porque os outros dias do ano todo são um massacre! Então sou incapaz de julgar uma mulher que escolhe a vida doméstica, mas não aceito a submissão que a tendência quer trazer consigo, tampouco consigo relevar o fato de que no mundo de hoje, dinheiro significa liberdade e se você não está sendo remunerada pela família pra servir à família, a conta pode chegar em alguns anos, e ser refém do seu parceiro é duro e solitário. Sem contar que essa premissa de cozinhar apenas o que o marido gosta, vestir apenas o que o marido autoriza ou somente ir na academia acompanhada é dar mil passos pra trás na luta de equidade.
Me sinto absolutamente perdida entre dois sentimentos: quero ter o tempo, o dinheiro e o privilégio de cuidar da minha família todos os dias com amor, mas quero ser livre pra perseguir os meus sonhos profissionais. Eu sei que eu já cuido de todos com amor, que me esforço pra fazer a lasanha, o bagels e o lanche zero industrializado, mas você sabe o quão exaustivo é dividir o tempo entre ser uma profissional competente e abocanhar minha parcela do mercado dominado pelos caras e ser uma mulher presente no lar? Imagina o tempo que é preciso abdicar com as crianças pra que eu esteja em reuniões, sessões de foto e outros? A dureza da vida é que não se pode ter tudo, eu sei disso, mas eu também posso desejar tranquilidade, e não sentir que tô sempre devendo alguém. Quero lutar todos os dias pra que todas as fotógrafas tenham as mesmas oportunidades que os caras, quero ser brilhante no meu trabalho, quero usar a minha mente criativa mas quero muito fazer arroz branco na hora do almoço. Arroz do dia anterior dá bom? Claro! Mas você ja comeu um arroz branquinho com cebola e alho feito na hora? Onde fica o equilíbrio? Sabe o que agravou tudo? O Devaneio sobre o tempo que me resta com as crianças. Só que eu já pago um preço caro por ter ficado quatro anos fora do mercado de trabalho, e não posso ficar mais sete pra fechar esse ciclo. Sabe onde mora o equilíbrio? Na reeducação desse nosso mundo, desde os parceiros até as políticas públicas e privadas. Nada contra a Nara e outras mulheres que ficam em casa, porque eu valorizo profundamente essa dedicação e por quatro anos fiz o mesmo, mas tem muito do conservadorismo por trás disso, porque romantizar o nosso papel como mãe e cuidadora do lar, é atrair uma geração inteira a não sair pro mundo pra ocupar os espaços que merecemos e sonhamos.
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Meus momentos Nara ✨ Cozinhar, fazer lancheiras especiais, ler e pintar as unhas.
Só que é impossível ter equilíbrio, porque vivemos num mundo construído por homens. Você precisa de doméstica porque o seu parceiro não foi criado pra fazer a parte dele nas tarefas domésticas. Você precisa de babá porque não consegue criar um neném sozinha, é preciso um par a mais de mãos e não são as pai, porque eles acreditam que basta você. Você tem uma cozinheira de marmitas pra sua casa porque cozinhar leva tempo, esforço e dinheiro mas você não consegue fazer a lista, as compras, cozinhar, lavar a louça e lidar com todo o resto se for sozinha, então melhor contratar. Você paga uma enfermeira pra te ajudar a cuidar da sua mãe porque nenhum dos seus irmãos acha que é também responsabilidade deles dar comida, supervisionar e estar presente (em casos de companhia e não necessidade médica). E aí, quando eu olho pra tudo isso e percebo que eles querem decidir o que fazer com os nossos corpos, com o nosso salário, com a nossa saúde, eu quero ser a Nara Smith. Quero me fingir por um minuto de burra e apenas olhar nos olhos dos meninos e fazer o melhor avocado toast que eles já viram. Quero esquecer os problemas lá fora e tirar cuidadosamente as manchas da camiseta do meu noivo, porque esse é o máximo de crise que sou capaz de lidar agora. Tenho três caras em casa que estão abertos e disponíveis pra evoluir comigo nessas questões, que ampliam o diálogo e não me fazem sentir que tô andando em círculos, mas mesmo assim falo com pesar pelo esforço deles: não é suficiente. Porque lá fora, hoje, eles são incapazes de lutar as minhas batalhas e tampouco entendem muitas das coisas que atravesso.
Tudo bem as vezes a gente querer ser Nara, mas sem esquecer que é irreal. Querer isso não fere o progresso, não tira nosso feminismo mas dá espaço pra reconhecer o cansaço! Desejar largar tudo e ficar em casa assando bolos é nosso pedido silencioso de “Chega! Não quero mais fazer tudo nas duas esferas”. A vida é complexa, criar filhos é barulhento e alto, na maioria do tempo desgastante e exaustivo. Estar em contato com esse tipo de conteúdo transporta a gente pra longe da realidade e por isso ele é tão agradável, mas fere nossa concepção do real, e promove marcas e empresas que te prometem uma vida similar à dela, ao comprar deles o sabão em pó perfeito, o aspirador que resolve tudo e outros. Quem vence de novo? O capitalismo, porque não existe nada de glamuroso no trabalho do lar. Ninguém veste uma saia de seda pra lavar o vaso sanitário, ou cozinha molho vermelho com camisa de linho. A distorção se instala no detalhe. Você cozinha de camiseta velha e começa a se convencer que precisa de roupas melhores pra ficar em casa, abre o app daquela marca famosa e escolhe algumas roupas, manda entregar e voilá: você resolver o seu “problema”. Cuidar da casa, da família e daquilo que a gente ama é importante e necessário mas é também uma via de mão dupla pra que fique mais leve a nossa dinâmica ideal. Eu fui extremamente feliz ao ficar quatro anos em casa com os meninos, fazer todas as refeições deles, levá-los todos os dias ao parquinho, promover piqueniques e outros. Esse tempo nunca mais volta e eu fico grata por ter me dedicado assim, mas fora do Instagram ninguém viu as amarguras desse processo, a solidão, o que isso fez com a minha auto estima e o quanto você fica refém sem dinheiro.
Bom, por hoje, conscientemente e sem nenhum pingo de culpa, diante de tudo que preciso fazer essa semana no trabalho, eu desejo ser Nara sim e já comecei o dia fazendo um matcha latte gelado pro meu amor, levei na cama, e fui feliz em realizar uma tarefa por amor e ver nitidamente o resultado dela: sorriso e bom dia gostoso. Talvez seja isso que mais nos seduza: se dedicar ao cuidado de quem a gente ama tem uma recompensa maravilhosa, e é um trabalho com começo, meio e fim que depende somente de você. Só que lá fora o trabalho acontece no coletivo, você depende de muitas pessoas e nem sempre é recompensado como deveria, mas viver é superar. Levanta e vamos ao trabalho!
Mas nada aqui é pra ser levado a sério né? Tudo não passa de um devaneio.
Beijos, quando apertar, assa um bolo que melhora! Até segunda!
Te indico de olhos e ouvidos bem abertos
Magnatas do Crime
Nova série do Netflix feita pelo Guy Ritchie. Se você não sabe quem ele é, além de ex-marido da Madonna, ele é um cineasta norte-americano que fez filmes que você provavelmente já assistiu como “Jogos, trapaças e dois canos fumegantes” e "Snatch: porcos de diamantes”. Em Magnatas do Crime, uma família da aristocracia precisa lidar com o caos que se instala depois que o patriarca morre. O filho mais novo, que era do exército, assume seu título de duque e descobre que toda a fortuna da família vem do crime.
A direção de arte entrega a assinatura de Guy em cada canto, muito sangue, cores saturadas e um figurino perfeito que te faz questionar se passa em um mundo contemporâneo ou não. Um mix de décadas passadas com modernidade. Uma atuação brilhante da Kaya Scodelario e uma trama super interessante! Dá o play e me conta depois o que achou?