Eu queria te contar em um devaneio o que esse último ano como corredora amadora significou pra mim, mas desde a corrida as palavras me fogem. O que escrevi parece apenas um relato de algo profundo mas inacessível pra mim mesma, porque na verdade percebi que correr me transformou mais do que eu sou capaz de explicar e esse devaneio é uma somatória de muito choro e clichês. Não sei te dizer exatamente o porquê, mas silenciei a minha mente e não tenho acesso a minha infância, não me lembro de muito e a maioria das coisas que quero saber preciso perguntar pra minha irmã mais velha. Alguma coisa na nossa construção de vida me fez acreditar com todas as forças que eu não sou feita de fibra, que eu quebro e não é pouco. Internalizei que não dou conta, não posso sonhar grande, não sou merecedora e genuinamente não sei porquê, mas sinto isso com muita normalidade e aguardo a minha herança pra investir em terapia e investigar isso. Parece antagônico pra uma mulher que construiu tanto, com trabalho duro e sorriso no rosto. Percebo hoje que isso só aconteceu porque não tenho nenhuma outra opção a não ser dar certo, um pensamento muito solitário de quem cresceu sabendo que teria que dar seu próprio pulo sem rede de proteção, cenário esse que minha mãe me vendeu com argumentos, castigos e obviedades. Hoje sei que, diante do meu privilegio, o que não me faltou e nem falta, é apoio e pouso, mas acho que a lavagem cerebral dela foi bem boa, virei gente grande e funcional.
Quando eu comecei a correr no ano passado, a primeira coisa que ouvi era que a minha hipotensão não aceitaria esse desafio. Que viver com a pressão baixa não me deixaria passar de alguns metros e que isso era normal da saúde, eu deveria aceitar. Se tem uma coisa que eu não dou conta, uma fraqueza mesmo, é me falarem que eu não consigo alguma coisa. Me senti de novo sendo posta à prova, e teimosa que sou, marquei a minha primeira prova de rua de 5km. Teimosia é uma palavra-cicatriz, uma escara nascida de uma pressão infundada por anos, pelas pessoas que me rodeiam. Essa palavra, sempre dita com pesar e negatividade, criou uma perseguição mental. Sou teimosa mesmo? Cabeça dura e inflexível? Que só enxerga uma verdade? Cruzei o pórtico dos 5km, com uma dificuldade tremenda. Adoeci nesse dia, uma febre ruim, um mal estar generalizado, e atrelei ao fato de que meus filhos haviam pego uma virose na semana anterior, achei que era só a minha vez, mas hoje vejo que foi mais que isso. Me senti orgulhosa e marquei uma corrida de 7km pra dois meses depois. Pensei que se eu fiz cinco, podia treinar pra surpreender com sete, mas a verdade é que ali eu já precisava provar pra mim mesma que mesmo à duras provas eu era capaz de treinar e chegar num objetivo palpável, coisa que na vida muitas vezes a gente não tem, pela falta de linearidade dos nossos objetivos. O que você quer alcançar, que basta treinar e fazer seu dever de casa pra chegar lá? Nada, porque não existe nenhuma previsibilidade no futuro, mas na corrida a gente se depara com uma deliciosa ilusão de controle. Uma relação viciante entre dedicação e resultados visíveis.
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As primeiras a gente não esquece: 5km e 7km
Aqui sinto que o maior divisor de águas entre persistir e desistir foi ter alguém que me lembrasse que eu estava acima da impostora, das crenças limitantes da infância, das palavras de quem me desestimulava. Meu parceiro, noivo, cara metade, entrou na jogada como sempre faz, pra me lembrar de me ver com a generosidade e paixão dos olhos dele. Me presenteou com um relógio da moda e me deu aulas de corrida de presente, porque se era pra eu lutar com o corpo físico e a cabeça, uma ajuda viria a calhar. Fiz 4 aulas com um treinador, Mateus, que virou também um grande incentivador. O treino pros 7km foi duro, segui pensando que eu só seria capaz de chegar a 5km e fim. Correr era gostoso demais mas era um momento de encarar as limitações, porque eu me cansava rápido, queria desistir a todo tempo, me sentia incapaz, não insegura mas incapaz mesmo, e apesar de toda impostora na maternidade ou na carreira, eu nunca senti essa limitação, porque no fundo eu acreditava que haviam outras soluções pros problemas, mas na corrida não existe outra solução a não ser correr a distância inteira com os seus próprios pés. Minha prova foi linda, chorei na maior parte dela, correndo na pista do aeroporto, pensando no meu pai que era piloto de avião e que gostava de correr também, foi muita emoção misturada ali. Corri no meu melhor tempo e senti uma onda de superação e alegria me tomar o corpo. Na linha de chegada? Meu amor de braços abertos.
“Quem faz sete faz dez” disseram todas as vozes. Óbvio que me inscrevi em outra prova, treinei como nunca e depois de seis meses dessa jornada, investi em um tênis pra corrida, desses caros que você parcela em doze vezes. Eis que duas semanas antes da prova, quando ele chega pelo correio, faço uma corrida e meu pé fica em sangue! Aprendi que na corrida apenas meias de poliamida são legais, e que seu tênis precisa ser um número maior, porque os pés incham durante o exercício. Completamente ferida, eu não andei por uma semana e desisti da prova, um balde de água fria que me quebrou, como se eu recebesse um recado do universo “pra parar, porque você já ultrapassou mesmo a sua capacidade, você não ia chegar e a gente resolveu te poupar.” Prestenção: tudo isso é uma grande analogia sarcástica do universo pra cada etapa, cada ciclo e cada área da vida. Quantas coisas você não começa com fogo e paixão, com determinação e sonho mas recebe o balde de água fria? Os “recados” do universo que você escolhe se vão te impulsionar ou te parar? Quantas vezes você pediu pra ter apoio? Pra ter verba pra investir em algo que te ajudasse? Que alguém te falou que você não poderia?
Bom, eu desanimei mas acabei correndo o marco dos 10km do lado do Mateus na academia, num domingo de revezamento nas esteiras, com uma torcida linda que gritava pra eu seguir firme. No fundo achei mais simbólico e mais poderoso que estar sozinha na corrida que perdi. Ali com as pessoas que todos os dias viam meus treinos e a minha disciplina na academia, senti uma torcida real, de quem acessa o esforço e a dureza de uma coisa tão pequena mas tão gigante dentro da gente. Saiu melhor que a encomenda e duas semanas depois busquei uma medalha de dez em uma corrida de rua pra marcar essa distância. Aqui já me deu vontade de fazer mais, era nítido o que tinha acontecido comigo: eu aprendi que bastava insistir que a superação viria. A corrida me ensinou que a tal teimosia que eu carreguei como uma cruz a vida toda era disciplina, força de vontade, determinação, obstinação. Eu sou uma pessoa resiliente e forte, que quando decide alguma coisa vai até o final mesmo com dor, com dificuldade ou sem vontade como tantos treinos aconteceram. Eram três treinos na semana e te conto com orgulho que em um ano eu faltei apenas um deles, independente da carga do trabalho, das viroses dos meninos, da mudança de casa, porque ser disciplinada te recompensa com uma sensação de ser inquebrável, de estar acima dos problemas e das tristezas, de não se abalar diante de tanto sofrimento do mundo e da nossa própria trajetória. Persistir é se colocar acima do caos e isso traz não só segurança mas serenidade e uma ilusão gostosa de que, se nada posso controlar nessa vida, posso controlar as minhas escolhas e como reagir à tudo.
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Decidi que queria correr uma meia maratona, 21.1km de distância, um marco de superação. Escolhi a meia do Rio de Janeiro, uma prova linda e a mais conhecida dos corredores. Queria um objetivo grande, bonito e motivador, pra que eu me lembrasse que o caminho difícil era pra chegar num lugar maravilhoso. Na virada de ano meu gato se emocionou e decidiu correr comigo, e o que era bom ficou ainda melhor, porque quando a gente tem um grande objetivo pela frente, as vezes fica solitário caminhar até lá, mas ter com quem dividir as dores de cada treino e as dificuldades de cada fase, ajuda tudo a ficar mais leve. E não me entenda mal, acredito que a individualidade no casamento é importante, ter espaço pros nossos hobbies, pras nossas vivências particulares também é uma forma de cuidar do espaço à dois, mas ter motivações e atividades em comum é criar uma ponte pra enxergar o outro com novos olhos, entendendo o esforço e a garra que cada um coloca na sua trajetória, quais dificuldades supera, onde dói, quais fantasmas aparecem pra te puxar pra baixo. Vira uma jornada de auto conhecimento partilhado, uma janela de oportunidade de entender e se orgulhar do outro.
A medida que o tempo passou, me senti pior do que quando comecei. Atingi um pico na prova de 13km mas depois era como se eu corresse sem ar, sem energia. Meu quadril começou a doer demais a cada corrida, mesmo com fisioterapia toda semana, Eu tinha colocado um objetivo ousado: correr a meia maratona em 2h. Isso, pra uma estreia é audacioso, mas lembra que eu sou destemida, pra alguns, teimosa. Insisti nos treinos, insisti em correr mesmo observando uma piora grande, um desestímulo crescente, uma vontade gigante de desistir de uma performance incrível pra correr acima das duas horas. Naquela altura achava que de fato eu havia atravessado a loucura e me colocado num lugar muito sem base de correr como se nunca, sendo que eu não andava nem 1km sem morrer. Depois comecei a achar que meu corpo já tinha me dado o máximo possível, e que esse máximo não eram 21km, mas deveria aceitar que tudo na vida tem um limite. Semanas depois descobri que estava com anemia profunda, quase sem nenhum ferro no corpo e sofrendo risco cardíaco. Os médicos me perguntaram como consegui chegar até ali nesse ciclo de meia maratona com um exame daqueles. Eu ri, eles não entendem que a ciência não estuda teimosia. Era pra estar deitada sem vontade nenhuma de viver? Era, mas não tinha como, a teimosia não me deixava parar e eu amei me olhar pela primeira vez com tenacidade.
Uma das coisas mágicas da corrida, é a quantidade de silêncio que habita em você. Por horas você não tem celular, pessoas próximas ou conversas. Você tem apenas um quadro nítido de quem você é na sua essência, pela forma que o seu íntimo alimenta a sua mente durante as passadas: você é gentil com você mesmo? Qual a voz que te fala pra seguir ou desistir? Você se ama inteiro ou se destrata? Quanto mais silêncio acontece, mais você entende as engrenagens que fazem você essa pessoa aí. Já no final do ciclo, no meio de uma corrida longa muito dura, me deparei com uma explicação perfeita da necessidade de readequar meu objetivo de duas horas, ou até de desistir. Inclusive por me descobrir tão bem nesse processo, entendi porque a notícia da anemia me bateu como um diagnóstico definitivo pro fim: quando o sucesso bate na minha porta, eu tenho medo dele, e foi correndo que tracei esse paralelo e enxerguei tudo, no silêncio incessante de cada quilômetro. Eu olho pra ele nos olhos e penso que eu não mereço nada daquilo, e tudo que eu puder segurar pra amortizar a sabotagem inconsciente que vai começar, melhor. A anemia já tava ali há semanas, mas saber dela mudou completamente a minha relação com o esforço ou a percepção desse esforço de imediato. E a cada passo que eu dava no parque, eu pensava em todos os projetos e objetivos que eu alcancei mas abri mão pra não ter a dimensão total desse sucesso, porque eu não aguento chegar lá. Eu não saboreio, não sinto, não celebro, porque no fundo eu simplesmente acho que cada coisa dessas, já está muito além de tudo que Deus deveria colocar na minha vida.
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Meia maratonista e feliz demais em não ter desistido!
Eu redimensionei tantas coisas depois de passar a linha de chegada, que nem vou te contar aqui. O pórtico não é a última coisa, nunca vai ser. A gente já sabe que é sobre a jornada mas a corrida me ensinou que pra além do caminho, é o que você faz com tudo aquilo que aprendeu, o que sustentou até o fim, como se sentiu, tudo que você se disse pra si mesmo no seu silêncio. O sucesso é aquilo que você sente, transborda e reverbera depois que a linha não existe mais! Diminuir nosso esforço, nossa história, nossa dor, compartimentalizar pra sentir menos, ter vergonha de ser muito, não se sentir merecedora de uma felicidade profunda ou de orgulho é só uma das formas de diminuir o tamanho do sucesso daquilo que você alcança. Tudo isso acontece antes, durante e depois! Eu cruzei a linha de chegada em menos de duas horas, eu superei todos os medos, eu fiz um esforço descomunal pra cumprir com a minha palavra pra mim mesma, não porque ia ficar lindo em uma estreia no esporte, mas porque nesse momento da minha vida eu precisava me olhar e ver como eu sou capaz de grandes coisas. Cruzei sozinha, pela ironia do destino meu treinador ficou com a namorada trinta segundos atrás, meu noivo vinte minutos depois. Mesmo com todo apoio do mundo na jornada, você atravessa sem ter quem te segure a mão porque ninguém pode te carregar. Eu chorei um choro baixo e sozinha, entalado de tantas palavras de dúvida que me foram colocadas, não pela corrida em si mas pela vida como um todo. Percebi quantas pessoas ao redor gostam de fingir que te apoiam mas insistem em colocar mais uma pedra no caminho pra te impedir de chegar, de forma velada e silenciosa, pra que você desconfie de você mesma sozinha e assuma que foi você quem se impôs essa dúvida. E quando tudo é alto e caótico, eu corro no silêncio pra lembrar agora que a minha teimosia é desconcertante pra quem não tem a mesma obsessão por superar a si como eu tenho, e eu cansei de ter vergonha disso.
Até quando a gente é capaz de mentir pra si, pra não ser tudo que podemos ser, com medo de desagradar ou ofender ao redor? Quantos quilômetros são necessários correr, pra esquecer uma vida de vozes duvidosas que insistem em te dizer os seus limites, sem teste algum? Você não precisa ser meia maratonista pra ter as respostas, mas tenho certeza que você precisa ser teimosa até a última gota. Você é tão maior do que tudo, mesmo sendo uma gota no oceano do mundo. Correr é um clichê absoluto e as pessoas tem toda razão. Correr me lembra que eu sou capaz de feitos extraordinários, mesmo que diante da perfeição da natureza eu seja a mais ordinária das criaturas.
adoro suas news ! continue sendo teimosaaaa
me sinto incapaz de fazer muitas comentários sobre esse devaneio… simplesmente emocionante e encorajador! me identifiquei em tantas partes que só pude sentir uma vontade imensa de te abraçar kkkkk