Quando você fecha os seus olhos, onde você se vê em cinco anos? E em vinte? Na sua resposta, pra além de bens materiais e afeto, o que você construiu? A maioria das pessoas, quando indagadas sobre planos a longo prazo, tem dificuldade de vislumbrar respostas palpáveis, de conquistas reais pra além do bem-estar, sucesso e tempo pra fazer coisas que gosta. No seu trabalho hoje, cabem planos pra vinte anos no futuro? O que existe de sólido na sua realidade presente que se manterá nas décadas que virão, e o que você faz pra conservar a existência disso? Suas finanças estão projetadas pra isso? Seus investimentos presentes terão colheita em alguns anos? Seus afetos estão fortalecidos pra além do hoje? Você já deve ter ouvido falar do termo “tempos líquidos” ou “modernidade líquida”, esse termo foi cunhado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Modernidade líquida é a era que vivemos onde tudo muda muito rapidamente e nada é feito pra durar, pra tornar sólido. Podemos incluir os relacionamentos amorosos, os padrões de beleza, a concorrência de mercado, a inovação tecnológica, o endeusamento de celebridades e sua alta rotatividade, a instabilidade do mercado financeiro, os empregos informais e sua cultura de desgaste, o extremismo político e tantas outras questões. Tudo é fluido e efêmero. Em uma entrevista, ele menciona que nossos antepassados tinham muita esperança no futuro, no progresso da sociedade, nas melhorias que viriam, e hoje tudo que sentimos é medo do incerto que apenas o amanhã carrega. Progresso pra nós é uma ameaça de ser “chutado de um carro em movimento a qualquer minuto” e eu não posso discordar dele. Sentimos medo do amanhã, e não esperança. Nos sentimos descartáveis, inadequados, ultrapassados mesmo sendo jovens.
“Líquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor pressão. Na verdade, são incapazes de manter a mesma forma por muito tempo. No atual estágio “líquido” da modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem. A temperatura elevada — ou seja, o impulso de transgredir, de substituir, de acelerar a circulação de mercadorias rentáveis — não dá ao fluxo uma oportunidade de abrandar, nem o tempo necessário para condensar e solidificar-se em formas estáveis, com uma maior expectativa de vida.”
Em 1978 a socióloga Elise Boulding disse que: "se alguém está sem fôlego o tempo todo só de lidar com o presente, não há energia para imaginar o futuro" e isso me chega de uma forma profunda, porque se era real na década de oitenta, o que somos nós agora em plena evolução digital, sem barreiras geográficas, acelerados como nunca? Se o presente escapava pelas mãos de Elise, quem sou eu nessa luta do hoje, com o celular em uma mão e o controle remoto na outra? Se lá atrás era difícil projetar uma construção a longo prazo, o que fazer com o fato que um dos nossos traços evolutivos, que é a habilidade de pensar no futuro, nos foge da presença? Segundo Thomas Suddendorf, da Universidade de Queensland, humanos podem ser os únicos animais com essa habilidade de viajar no tempo, passado e futuro. Só que essa exata habilidade nos mostrou uma coisa especial, um traço tóxico viciante do qual nenhum de nós passa ileso: a fraqueza do viés presente. Aquele que favorece as recompensas a curto prazo mais do que a longo prazo. Quem nunca abandonou a dieta saudável pra chafurdar com uma barra de chocolate que atire a primeira pedra! Se somos plenamente capazes de esquecer o nosso próprio bem-estar a longo prazo, quem dirá pensar nos nossos bisnetos que colherão um mundo absolutamente fodido com a crise climática, o esgotamento de matérias primas, desemprego, fome e superlotação? O agora ainda é tudo que nos importa?
Se você revirou seus olhos e pensou em “la vem a polícia” te acalma, vamos pensar no micro, já que atualmente a primeira forma humana de se importar com algo é olhar pro próprio umbigo. Inclusive, isso por si só já ilustra meu próximo ponto: perdemos o senso crítico. Estamos à deriva de quem nos ilumine os passos, porque vivemos sem perspectiva alguma. O centro do mundo somos nós, e talvez por isso mesmo seja tão difícil vislumbrar valor naquilo que perdura pra além de nós mesmos. Ideias duradouras? Não temos. Projetos em desenvolvimento? Abandonamos. Aprender uma faculdade? Melhor ser educado pelo Youtube, quem tem quatro anos pra aprender algo desatualizado? Temos tecnologias pra problemas que nem existem, janelas de mercado curtas com produtos-solução que logo irão ser descartados sem nenhuma piedade do material , do tempo, do investimento. Quer um exemplo prático? Você já se questionou cadê todos aqueles patinetes elétricos que estavam estacionados em todas as esquinas do país de norte a sul? A mobilidade urbana, vendida como sustentável, foi descartada no lixo, junto com a caríssima matéria prima, cujo o extrativismo sem critérios segue deixando marcas eternas na natureza. Estamos impacientes, e moldamos toda a nossa atenção pro imediatismo que a conectividade construiu! Queria dizer que não é culpa nossa, mas acho rude lavar as mãos como se fossemos todos apenas resultado dos meios e não os meios em si. Só que preciso concordar em partes quando ouço que não fomos nós que escolhemos isso, porque é muito difícil navegar contra a maré! No final das contas, todos nós andamos no tal patinete, mesmo conscientes do tanto que essa e outras invenções modernas eram efêmeras. Já não me lembro mais quando foi que eu não liguei pra prazo de envio das compras, hoje todos nós escolhemos o tipo de frete mais rápido, lojas 24h, shoppings abertos mais cedo ou mais tarde que nossos horários comerciais, disponibilidade infinita pra todos. Eu amo a manicure do shopping que as oito da noite está lá quando na semana eu fui incapaz de fazer uma pausa pras unhas, e isso diz muito sobre mim mesma e sobre o mercado. Não faz diferença na minha agenda encaixar as unhas, mas pra família dessa profissional, faz diferença ela não estar sentada à mesa durante o jantar. Dito isso, escolhi meses atrás tomar vergonha na cara e ou fazer sozinha em casa ou ir em horário de pessoas tradicionais. Eu não vou mudar o sistema, mas me sinto melhor em não contribuir pra isso!
Viver sem planejamento é uma armadilha silenciosa, e ela acontece a longo prazo mas também se faz presente em janelas menores. Quantos livros e seriados você abandonou na metade nos últimos meses? A satisfação imediata é mais valorizada que o auto conhecimento, a experiência e a construção de repertório. A vida se transformou no rolo da câmera de tudo que gera prazer e felicidade, como se o resumo do que somos fossem os momentos, ignorando completamente o fato que existe sombra na luz. Sempre conectados e disponíveis, julgados pela capacidade de hiperproduzir, sem registrar que conhecimento leva tempo, e que tudo isso que estamos absorvendo é superficial e na maioria das vezes inútil. Você assiste tutoriais de tarefas que não vai repetir tão cedo, mas é incapaz de se dedicar a aprender a fazer a própria refeição pra não depender do delivery, pra cuidar da saúde, pra se dar autonomia, porque tudo isso só tem recompensa a longo prazo. Trinta reais em uma refeição parece barato agora, até você descobrir que o arroz e feijão custam juntos quinze e rendem quantas vezes mais? Não importa, você já não acredita mais em nada que não seja satisfatório, palavra que inclusive caiu no vocabulário infantil por trazer consigo a síntese da endorfina em forma de vídeo nas redes sociais. Dopamina imediata!
I have two kinds of problems: the urgent and the important. The urgent are not important, and the important are never urgent. —Dwight D. Eisenhower
No ciclo do imediatismo, nossa performance também sofre com o desejo de resposta do mundo. No trabalho somos premiados por fazer as coisas mais rápido, e existe um prazer grande em riscar as coisas da sua lista de tarefas, mas adivinha? A procrastinação está diretamente ligada à nossa impaciência. Consegue entender o ciclo vicioso que nos colocamos? Sentimos tamanha impaciência que optamos por fazer diversas outras coisas pra removê-las da nossa lista de tarefas, deixando aquilo que era mais importante pro final. Trabalhamos desgastados pelo que fizemos anteriormente, sem entregar o nosso melhor, porque não conseguimos lidar com o fato de que o urgente e o importante são coisas diferentes: queremos fazer os dois. Passamos o que tem menos custo na frente, pra ter a sensação de limpar o caminho daquilo que vai nos demandar demais. Essa decisão na verdade nos distrai de tudo o que é importante e nos transforma em bombeiros dispostos a apagar fogo o dia inteiro ao invés de investir no revestimento da casa. E você pode transformar isso em tudo que lhe couber: não comprar aquela roupa e fazer uma caixinha pra viagem vai ter levar até seu sonho, estudar pra um mestrado vai te custar a vida social por alguns meses mas vai te trazer oportunidades na sua área, dedicar uma hora por dia aos exercícios físicos é custoso mas vai te dar longevidade no final da vida. Tudo aquilo que vale algum sacrifício momentâneo pode valer a pena se existe desejo e vontade de viver outros cenários em vinte anos.
A vida é sim uma grande oportunidade de ser feliz, de viver momentos inesquecíveis e ter memória de alegrias preciosas, mas muito disso também se esconde na nossa capacidade de projetar, construir, abdicar do prazer momentâneo. Você pode ser feliz jantando toda semana fora, mas talvez essa escolha te afaste de viver uma outra grande experiência que é jantar em outra cultura. Será possível não querer tudo ao mesmo tempo e principalmente: não querer tudo hoje? Hoje é um privilégio gigantesco, mas o amanhã também. Você merece coisas maiores que o seu desejo de realização instantânea e no fundo você sabe disso! Pra além de si mesmo, existem outras pessoas que também merecem a mesma magnitude, a mesma generosidade e as mesmas alegrias do mundo. Só que pra elas alcançarem isso, talvez seja preciso que você repense seus hábitos, seus consumos, seus princípios. É pequeno eu deixar de procurar serviços fora de horários comerciais pra que esses profissionais tenham vida? Sim, eu sou só uma, mas e se o imediatismo que também mora em você me acompanhar? E se ao invés de sermos pra sempre refém do meio, sermos esperança no futuro? Mesmo que isso seja reconhecer a nossa insignificância mas ao mesmo tempo a nossa grandiosidade. Você não queria tudo ao mesmo tempo? Somos os dois.
Mas nada aqui é pra ser levado a sério né? Tudo não passa de um devaneio.
Beijos, quando puder sonhe com o futuro e faça ele existir! Até segunda!